A
estória de Lélio e Lina
Um
Rosa pós-romântico
por André Carvalho
Pretendo apresentar aqui Guimarães Rosa sob uma óptica diferenciada. Não
comentarei a beleza estilística ou toda a sua capacidade de universalizar o
sertão humano e as veredas do ser. Falarei apenas sobre uma pequena e pouco
comentada obra, que se encontra dentro do volume "Corpo de Baile". É
o romance intitulado: "A estória de Lélio e Lina".
Escolhi esse romance pois encontrei nele
um Rosa diferente. Um Rosa que eu chamo de pós-rômantico.
A estrutura já é diferente das demais.
O lirismo e o experimentalismo não são as características predominantes; não
são, como Luciana Stegagno Picchio afirmou das demais obras de Guimarães Rosa,
personagens principais. O lirismo está presente, afinal, trata-se de Guimarães
Rosa, mas seu estilo dá vez a uma estrutura muito parecida com a dos romances
românticos: uma história, com começo meio e fim, de caráter alegórico, de
fim moral, com um herói, uma heroína, com personagens quase todos estáticos,
e com um final feliz e empolgante. Até mesmo as canções, sempre presentes em
suas novelas, estão mais resumidas e objetivas, incutando explicitamente um
valor moral à ocasião.
As personagens de Rosa sempre ganham
dimensões arquetípicas. É sempre possível lhes traçar um paralelo com
figuras da mitologia ou com algum termo psicanalítico. Prefiri deixar isso de
lado, pois a intenção de Rosa, ao criar seu universo, seu Grande Sertão, era
fazer com que as estórias, as personagens sozinhas ganhassem suas verdadeiras
dimensões. Prefiro citar, daqui pra frente, o conto "Sarapalha" que
falar teoricamente sobre amizade; prefiro, sempre que tocar no tema do destino e
da obstinação, citar junto "A hora e a vez de Agusto Matraga".
Assim, cada estória, novela, causo, de Guimarães, torna-se uma referência, lírica
e completa para uma análise profunda, contendo, certamente, elementos para todo
tipo de análise e compreensão.
Outro fato curioso nessa obra é que é
completamente ausente de crítica à sociedade. Rosa, por ter um conhecimento
por demais profundo de seus temas, decidiu mostrar os fatos acompanhados de uma
saída, uma solução que provasse a humanidade do fato. É como se ao invés de
denunciar o suicídio, e condená-lo moralmente, o autor preferisse entender as
razões por que ele ocorre, mostrando que é um acontecimento comum, universal.
Assim, o autor torna-se cúmplice de seus personagens, entende a razão de cada
um, e até acha finais felizes para todos.
O
romance dos amores
A intenção de Guimarães Rosa ao contar a estória de Lélio e Lina era
a de, em um romance, escrever sobre todos os tipos de amores existentes.
Escrever sobre a relação homem-mulher. Contar, através de um herói, causos,
onde vários símbolos de mulheres estivessem presentes, sem deixar de ser
coerente dentro de uma história bem articulada organicamente. Darei ênfase a
esse interpretação, tentando explicitar os diferentes tipos de relacionamentos
mencionados na obra, e deixando um pouco de lado o psicologismo de cada
personagem. Focarei minha atenção no herói, Lélio. Deixando claro, que cada
vaqueiro e cada animal, na obra Rosiana é rico em símbolos e pode ser
analisado profundamente, também.
A história toda se passa no Pinhém, no
sertão de Minas Gerais, no conhecido e explorado universo geográfico que
Guimarães Rosa utiliza. A diferença neste romance está no fato dele se
parecer muito com um romance urbano, alencariano, por exemplo. Não fala de
bandos de jagunços, nem de personagens solitários, vivendo no meio do mato,
isolados de uma sociedade. Fala, de um vilarejo, pequeno, mas com estrutura própria,
bem definido, quase cidade, com suas complexidades. O fato interessante, é que
o vilarejo é regido justamente pelo tema da obra: a busca do homem pela mulher,
a busca de amor, a busca do feminino por machos do sertão.
Muitas vezes, Rosa deixa claro que para
se sobreviver no sertão, um tem de ser forte, bruto, áspero. É o masculino
que se faz necessário: a força, capacidade de caça, de briga, de encontrar
alimento, vencer doenças e batalhas contra inimigos naturais e humanos. Quando
Rosa trata disso, procura polarizar, adicionando um elemento feminino. Muitas
vezes, fez isso de forma artística, brilhante, como em Grande Sertão: Veredas.
Onde o próprio Riobaldo estava divido: sentia sua sensibilidade, confundia-a
com fraqueza, e via-se apaixonado por Diadorim, seu companheiro. Em Lélio e
Lina, a busca pelo feminino é mais objetiva, mais real: é, de fato, a busca da
mulher pelo homem; o macho que procura a fêmea. Toda a vila gira em torno
disso, cada personagem tem seu par, e quem não tem, está buscando um.
A estória começa com o vaqueiro Lélio
de Higino chegando na fazendo da cidade. Vem sem dar muitas explicações,
supostamente procurando por novas aventuras, acompanhado de um cachorrinho
desconhecido dele, pertencente a uma habitante da cidade. Logo, Lélio é
empregado, conhece seu patrão e os vaqueiros, que ao longo do romance tornam-se
companheiros. É espantoso a falta total de tensão no livro. Ao contrário das
novelas curtas de Rosa, que são trabalhadas de forma a provocar curiosidade,
esta é tratada de maneira tão simples que parece um relato desinteressado, sem
objetivo de contar um "causo" propriamente dito. Realmente, o objetivo
não é esse. É um romance de tese, trabalhado de maneira tão sutil que pode
ser aproveitado tanto como obra filosófica, como na forma de romance romântico,
puramente lúdico e cheio de aventuras.
Lélio
e Sinhá-Linda - O amor platônico
Lélio chega pensando já em "lher, mulher". Veio de Higino por
causa de uma, não consegue esquecê-la. É o primeiro tipo de amor tratado no
livro: o amor platônico, idealizado, não realizável.
Em suas andanças anteriores, o herói
conheceu Sinhá-Linda, filha de seu patrão. Era uma moça prendada, que se
divertia em viajar perto dos vaqueiros, mas tinha por eles apenas curiosidade.
Trocou quase nenhuma palavra com Lélio, mas, mesmo assim, ele se apaixonou. E
foi um amor tão forte, que durante todo o livro, serve de comparação para os
demais. É como se ela tivesse sido de molde para sua busca. Afinal, não é o
nosso primeiro amor, o mais forte, especialmente quando não é realizado?
Lélio não vai saber nunca se Sinhá-Linda
realmente merecia toda esta admiração. Ela vai com a família para Paracatu e
ele segue seu destino incerto. Nunca mais a revê. Só no final do livro tem notícias
dela, de que está bem, vivendo não muito longe dali. Lélio sempre mantém
vivo esse amor, essa idéia da mulher perfeita, mais linda e mais amorosa que
todas as outras. É a chama que não se apagará nunca, é uma idéia, é ideal.
As
'Tias' - O amor necessário
Logo, Lélio sente necessidade de mulher, para uso, para necessidade.
Refere-se claro, a mulheres da vida. Seus amigos lhe indicam as
"Tias", apelido dado a duas mulheres, uma branca e outra negra, Tomázia
e Conceição. Elas não eram prostitutas, não cobravam dos vaqueiros, faziam
porque gostavam. É o feminino puramente sexual, de ocasião. Todos as
respeitavam e estimavam, e elas gostavam de todos. Eram grandes mãe, cheias de
instinto, que acolhiam a todos, carinhosas, incansáveis, que, além do sexo,
proviam conversas no quintal, jogos de baralho, etc. Fazem Lélio se sentir bem,
porém, após os prazeres, ele sentia um pouco de remorso. Remorso por elas
serem de todos, por serem do momento e, principalmente, por não chegarem aos pés
de seu amor ideal, Sinhá-Linda.
A forma com que Guimarães Rosa construiu
as "Tias" é muitíssimo interessante. Não fazem o tipo da prostituída
ressentida, ambiciosa, ferina, a que é punida pelo destino sofrendo conseqüências
terríveis, tornando-se vilãs. Elas simplesmente amam demais. Amam o prazer, e
vêem o sexo da forma mais natural possível, um aconchego. Rosa não as julgou,
ninguém na cidade assim o fez. Eram necessárias, gostavam do que faziam, e,
conscientes disso, viviam em paz. É uma compreensão profunda, que, como dito
anteriormente, impede Rosa de criticar. Não representa a prostituição como
instituição, mas é sua origem e seu papel necessário dentro da sociedade da
época (e atual?).
São personagens tão simpáticas e
sedutoras que dois vaqueiros acabam praticamente casados com elas; quando todos
da cidade já encontraram seu par, ou se foram, esses dois vaqueiros continuam a
vê-las e sonham com o casamento, aparentemente não ligando para o seu passado.
Lélio
e Jini - O amor carnal e proibido
Passados seus primeiros meses em Pinhém, Lélio conhece a esposa de um
vaqueiro, seu companheiro. É uma mulata, muito atraente, de olhos verdes. É a
paixão que toma conta de Lélio e também de Jini, seu nome. Difere da relação
das "Tias" pois, com elas, não há paixão e sim necessidade carnal.
No caso da Jini, é atração física, química. Não há idealização psicológica,
apenas forte apelo físico.
Outro fato extremamente importante, é
que traz uma enorme carga de culpa a Lélio, pois é mulher de um amigo, um
vaqueiro muito respeitado. Apenas de olhar para a mulata e desejá-la, Lélio
sente culpa, tem dificuldades de encarar o amigo e tenta com todas suas forças
não pensar no assunto.
A atração pelo proibido e o forte apelo
sensual são mais fortes que Lélio, e, quando o amigo se ausenta por algumas
semanas, os dois não conseguem se manter afastados e concretizam seus desejos.
Durante todo o tempo em que o amigo está fora, Lélio dorme na casa de Jini, e
a cenas são sempre fortes, quase animalescas, como se fosse o instinto que os
motivasse.
Aí estão dois tipos de amores possíveis.
O carnal, a paixão; e o amor proibido, que implica na traição de um amigo. É
mais forte que a consciência de Lélio, e mesmo com a cidade toda sabendo sobre
o caso, ele continua a vê-la, até que o amigo volta e os encontros cessam. O
impulso venceu a razão, a busca pelo feminino venceu.
No final do romance, Jini se separa de
seu marido, e passa a rever Lélio. Até que o trai também, e fica por algumas
semanas se prostituindo. É a fêmea procriadora, que não consegue ficar longe
dos homens, a própria paixão encarnada. Acaba mudando de cidade e tem-se notícias
que se casa com um fazendeiro rico, e torna-se uma dona de casa mandona e
rabugenta. Se pensarmos bem, foi o final que Jini queria, ter seu macho (que,
convenhamos, ganhará um bom par de chifres) e viver relativamente bem.
Lélio
e Manuela - O amor conveniente
Durante todo o romance, Lélio tem duas opções de casamento, com
mocinhas distintas: Manuela e Mariinha. A primeira logo o atrai, mas não é
"amor de verdade". Ele nunca vai realmente atrás, até mesmo porque
um amigo já é apaixonado por ela e tenciona tornar-se noivo.
Chega um ponto, após ser traído por
Jini, que Lélio se vê sem saída, e aproxima-se mais de Manuela. Olha para os
lados, e como não tem opção, pensa em ficar noivo. É o amor convencional,
aquele que vai surgindo por falta de opção. "Gosto de quem gostar de
mim" é inclusive a fala de Manuela quando Lélio lhe pergunta de quem
realmente gosta. Essa fala resume a personagem e resume a espécie de amor que
ela representa.
Na verdade, é um tipo de amor muito
fraco, e não resiste quando seu amigo, aquele iria ficar noivo dela, lhe
confessa que ela não era mais virgem, tinha ficado com dois homens
anteriormente. Lélio fica temporariamente louco, até que vê as coisas com
clareza, e percebe que isso não importa. Vê também que não ama Manuela a
ponto de casar-se e arruma o noivado entre ela e seu amigo, que a esse ponto já
perdera a outra pretendente.
Lélio
e Mariinha - A amor amizade, a última esperança
Quase no final do romance, depois do fracasso com as demais mulheres, Lélio
aproxima-se de Mariinha. Sempre a achou muito bonita, mas também nunca quis
nada com ela. Vendo-se seu amigo, e não tendo mais oportunidades, Lélio tenta
algo mais. Mariinha realmente só queria amizade e não lhe retribui a afeição.
Já era apaixonada, secretamente, pelo patrão dos dois. É o relacionamento
menos trabalhado do livro. É ao mesmo tempo a confusão entre a amizade e o
amor e o amor por falta de opção.
Quando o patrão vai-se embora, Mariinha
sussurra ao seu ouvido "Leve-me junto, leve-me junto" e chora
copiosamente à vista de todos. Embora o patrão não lhe conceda seu amor, ela
é invejada por Lélio, que nunca tinha visto um amor desse tamanho, capaz de
enfrentar uma situação daquelas, com a mulher do patrão e todos ao redor,
humilhando-na. Não foi um final muito feliz, porém Mariinha representa uma
amor de grande intensidade, secreto, que cresce ao olhar de todos, mas que não
é realizado e que se mostra num momento de catarse. A personagem ganha força e
fica sub-entendido que se levanta e vai tentar a vida em outro lugar.
Lélio
e Lina - O amor
Agora, falo da heroína do livro. Deixei para o final, pois ela é a
linha une as histórias e que não permite que a busca de Lélio seja em vã.
Guimarães Rosa projetou-se na forma de
uma velhinha, a mais simpática do vilarejo, dona Rosalina. É a figura que
representa sabedoria, a que dá conselhos a Lélio, que vê tudo sob uma
perspectiva mais ampla, mais real. Por ser mais velha e ter mais experiência,
é uma espécie de mestra. Afeiçoa-se imediatamente por Lélio, sempre o chama
de "Meu Mocinho". Inclusive, o cachorrinho que veio com ele, no início
do romance, pertence a ela.
Dona Rosalina, é a mentora de Lélio.
Todos os domingos, ele vai vê-la, pedir conselhos e contar-lhe todos os
detalhes de sua vida íntima. Quando ele sente vontade de partir da cidade,
tentar a sorte em outro local, só não o faz por causa de dona Rosalina, é a
única personagem de quem realmente gosta.
Pode-se notar, logo de início, a incrível
semelhança de gênio entre os dois. Lélio é uma espécie de pré-Riobaldo,
reflexivo, meditativo, pré-sábio, alguém que tentava saber o porquê das
coisas, e que tinha um enorme senso moral, mas que ainda era jovem. Rosalina já
passara por tudo isso, tivera uma irmã que virou freira e uma outra que caiu no
mundo, logo, diz-se o meio termo. É exatamente isso, o grande meio termo, o
grande equilíbrio, e, portanto, a grande sábia. É o pós-Riobaldo, e o pós-Lélio.
Fala, inclusive, que houve um erro de momento entre ela e Lélio, se ela fosse
mais nova, ou ele mais velho, casariam perfeitamente. Ela é justamente o próprio
Lélio mais amadurecido, mais desenvolvido, por isso, entende perfeitamente
todos os seus sentimentos e sabe livrá-lo de todos os problemas. É o elemento
simbólico por trás do qual se esconde um filósofo Guimarães Rosa, ensinando,
pelos ditos de uma boa velinha, a receita de um grande amor.
Obviamente, representa o amor espiritual,
a confluência de idéias e, principalmente, o amor de mãe. O amor mais forte
que todos, e que, no final, sobrevive, pois Lélio e Lina fogem para longe.
Afinal, Lélio já "viveu o extrato" em Pinhém, e se a velhinha era o
único motivo dele ficar, ela decide ir junto, passar seus últimos dias com seu
afilhado e último amor.
A finda cena do romance, capta Lélio e
Lina fugindo, de manhã cedinho, sem se despedir de ninguém, e com o
cachorrinho seguindo-os. É a força de um amor real, de um feminino que
completa a parte mais pura, mais espiritual do herói, que o guia e que
sobrevive apesar de todas suas infelicidades. É um retorno à grande mãe, símbolo
máximo do feminino da natureza.
É o final mais feliz possível e encerramento de uma grande tese, na forma de romance, tão profundo quanto Guimarães Rosa pode ser, e tão belo como sempre é.